29/12/2008

Mea Culpa

A culpa. O tema força-me, uma vez sem exemplo, a escrever na primeira pessoa. Porque vivo com isso, porque vivo isso, porque é isso que sou. E não o seremos todos, no fim de contas? No remate de cada discurso com que encenamos uma seriedade que não terá sequer existência real, na aterragem de cada pirueta com que aligeiramos uma vida insuportavelmente carrancuda, no arquejar final de cada orgasmo que nos eleva além da rotina pedestre de nós mesmos – tudo vem a terminar em latim, num mea culpa mais sentido que pensado, única liturgia que nos sobrou de uma infância onde tudo parecia ser muito mais simples.

Não tinha conto nenhum para apresentar que versasse a culpa, talvez por tantos servirem, muitos mais do que poderia aqui contar, ainda que estivesse disposto a fazê-lo, o que de modo algum pretendo ser o caso. Mas comecei a ler outros contos, e admirei-os. Quis comentá-los, e ao mesmo tempo esquivei-me a fazê-lo, porque não valia a pena, porque era óbvio, ou então porque não era. Em jeito de único comentário, digo que não o fiz porque eram bons demais, e todos os comentários que não fossem banais teriam de ser mais altos louvores do que o meu egotismo se sentia, no momento, disposto a permitir. É verdade, todos os escritores são egotistas, como de resto todas as outras pessoas, só que os escritores são obrigados a lidar com isso, faz parte do métier. E olhar para dentro das mais íntimas profundezas da alma, na maior parte dos casos, é como olhar para o fundo de um poço lamacento: causa vertigens, e a imagem é tão putrefacta e desagradável que não vale realmente a pena. Alguns discordarão, direito que sem dúvida lhes concedo, mas não tenho a certeza se esses não estarão, porventura, a olhar para outra alma qualquer, é sabido que há muitas.

Mas isto é um conto, de modo que talvez seja melhor, restringindo-me ao molde, apresentar desde já a história da Luísa. Vocês conhecem decerto a Luísa, a que namorou com a Teresa, e desde já me dispenso de aprofundar a culpa subjacente a esta última frase. A Luísa assumiu essa relação, elas eram a uma da outra, e teriam decerto assumido num altar o seu amor, estivesse porventura tal opção disponível. Não estava, mas era como se fossem casadas, e o Joaquim passava-se completamente com tal coisa.

O Joaquim fora namorado da Luísa numa outra vida, vida que ele se recusava a deixar morrer. Coisa banal, como se vê, mera rejeição de uma relação menos convencional, em que o aspecto inusual não é senão o pretexto que serve às mil maravilhas para o protesto que de qualquer modo não deixaria de existir. A lógica é simples, quero lixar alguém, e o alguém em causa já se expôs à crítica, pois vamos então a isso, todas as pedras são boas para partir vidros, independentemente das razões de quem as atira. Mais não se fez necessário para que o Joaquim arrastasse pela lama o nome da Luísa, sob pretexto de ser lésbica, e outros termos bem menos desculpáveis, mas guerra é guerra, que diabo!

Tanto não lhe bastou, e a coisa acabou num confronto directo, os dois sozinhos, sem ninguém que pudesse intervir, mesmo imaginando que alguém o quereria fazer. Depois desse dia, Luísa perdeu o seu sorriso, e raramente falava, fosse acerca do que fosse. A culpa não terá cabido inteiramente ao Joaquim, antes deveria ser partilhada por muitos, mas é duvidoso que alguém a aceitasse. E muito menos o Joaquim a aceitaria. Caramba, ele apenas fez o que qualquer homem faria, e um homem é um homem, tautologia que parece desculpar muitas imbecilidades.

A vida de Luísa continuou, mais triste, é certo, e sem a alegria de um simples sorriso. Ela poderia até passar por cima de tudo o que aconteceu, talvez conseguisse até lavar-se por dentro, e prosseguir a vida como dantes, fazendo tábua rasa daqueles breves instantes. Mas aquilo que não a larga, o estigma que para sempre a persegue, é a sensação intolerável de que tudo aquilo, a imposição, a violação, foi tudo culpa dela.

A Teresa acabou por deixá-la, compreensivelmente. Ninguém gosta de viver num cemitério. E se procurarmos bem, há sempre alguém disposto a sorrir, ou porque lida melhor com a culpa, ou – mais provavelmente – porque arranjou alguém em quem pôr a culpa. É lixado, concordo, mas garanto-vos que eu não tenho culpa. Palavra de Pinóquio.

9 comentários:

Adriano disse...

Obrigado, Nuno.
Mas não é necessária tanta humildade. Acho que nós estamos todos a ajudarmo-nos mutuamente. E isso é impecável. Penitencio-me, no entanto: o tempo que julgava ter, não o tive. Mas temos de nos ir lendo e criticando, isso é certo.
Bom ano para todos nós e para todos quantos nós amamos.

Adriano disse...

Todas as pedras são boas para partir vidros, meu caro. Todas as pedras são boas para partir vidros!
Coisa certa.

Margarida Tomaz disse...

Não sei de que pedras falais, mas no meu modesto saber, algumas pedras partem tudo, outras não partem nada. Neste blog, as pedras brilham.

Bom Ano 2009 para todos.

Nuno Baptista Coelho disse...

Sinto-me avassalado, meus caros. Três comentários – não, com este são quatro – caramba, isso é um record neste blog onde cada um só comenta para dentro. Peço a todos que não tomem isto como uma agressão, eu pretendo apenas mencionar um facto. Num blog como este, exclusivo e tudo, eu esperava muito mais interacção, comentários ‘on the spot’, nós todos juntos, sei lá. Em vez disso, vejo silêncios de rachar os tímpanos, de cada vez que um post lança o seu splash no mutismo geral. Chamem-me otário, se quiserem, mas não é para isto que estamos aqui, pois não? Quero dizer, não haverá nenhum de nós que não tenha já experimentado o que é escrever para a gaveta. Será este blog uma dose adicional do mesmo? Não quero que seja isso.

O meu profundo agradecimento ao Adriano, com os seus dois comentários. Um deles foi um ‘avante, camarada’ que muito agradeço (todos nós precisamos de encorajamento), e o outro foi de facto uma observação sobre algo que eu escrevi. Muito obrigado, Adriano. Se bem compreendi, é mesmo essa a ideia.

Hesitei antes de escrever este comentário (ainda por cima, a um post meu, o que é sobremaneira soez). Mas acho, realmente acho, que não há grande sentido em termos um blog, se não interagirmos, e, como diz o Adriano, nos ajudarmos uns aos outros.

Por vezes, temos de sacrificar mesmo a nossa privacidade, Eu começo por dar o exemplo: não digam a ninguém, mas fiz anos hoje. Mentira, foi ontem, que o relógio da torre da igreja já dobrou as doze badaladas. Nesta semana natalícia – barra – aniversariante, recebi apenas um perfume, coisa que interpreto como um sinal de que estou a cheirar menos mal este ano. Recebi também, no mesmo dia natalício, os comentários do Adriano, cuja lição pretendo usar mais frequentemente do que usarei o perfume (sim, azar de quem estiver perto de mim). Não me interpretem mal, isto não é um convite para comentários lamechas, nem uma tentativa de transformar o blog num espécie de MSN em rede fechada, com cada um a bolçar os seus ‘adorei’ no colo de todos os outros. Só gostava de sentir que todos nós, mesmo quando não conseguimos encontrar tempo (ou espaço) para escrever, não deixamos assim mesmo de nos dar ao trabalho de ler, e pensar o que lemos, e, porque não, dizer o que pensamos. Sem complexos, ou retracções, só uma coisa entre amigos. Porque é isso que somos, não é?

Ou então não. Quero dizer, é apenas uma sugestão. O ponto mais importante aqui, e a razão do comentário, é desejar-vos a todos, Margarida, Dulce, apsarasamadhi (WTF?), Adriano e Armindo, um excelente 2009, e uma passagem de ano inesquecível.

Um abraço, e até para o ano,

Nuno

Armindo S. disse...

Espantástico!
Se fosse dirigente desportivo estaria ufano do conjunto que consegui unir. Não sou dirigente de coisa nenhuma, excepto talvez e por enquanto dos meus próprios passos. A assunção deste papel que me cabe é o que me apanha mais desprevenido. De facto, só se deve comentar o que se desconhece pelo espanto ou o que se conhece pelo sublinhado. Ora sublinhar faz pouco sentido a quem tem segurança naquilo que apresenta e na pior das hipóteses pode raiar a bajulação.
Comentar quando se vai ao leme soa ainda pior.
- Então não conheces quem convidas?
- Pois, vai polindo as jóias para brilhares mais que elas.
- Sim, não valem nada, escusas de criar mercado. Não há procura.
Ao jeito da parábola do velho, do rapaz e do burro.
Por outro lado o egotismo ajuda à combustão da criatividade do escritor, uma espécie de oxigénio em meio inflamado.
Polir o ego, pois claro, para o escritor seguir na senda da sua própria ilusão, produzindo cada vez mais e sobretudo melhor.
Os que ensinam, (não tanto por serem sábios, mas talvez mais por deformação profissional), creio que sabem que não há melhor carburante que um afago bem aplicado.
Entre pares, uma vez que não existe essa interdependência professor- aluno, a crítica aparece sobretudo para zurzir, surgindo o reparo – mais uma vez após o espanto, agora pela inesperada (o esperado seria o sublime a que nos foram habituando) apresentação que nos defraudou.
Tudo, no entanto, depende do contexto. Se os pares se conhecem de há muito, se há deferência ou constrangimentos diversos, enfim, uma luta entre o publicado e o publicável, gerido pelo julgamento prévio de uma consciência.

Preocupa-me, mais que estas considerações, o administrar o futuro. Quem virá? Como entrará? De tal modo me tem preocupado que sinto necessidade de partilhar estas inquietações com todos e agora contigo, Nuno, para quem este escrito tinha inicialmente sido dirigido , aliás o que me ocorreu após ter lido o teu texto foi comentar simplesmente com uma única palavra: sublime. Depois é que escolhi o neologismo cuja autoria se deve ao meu amigo Estêvão Vidazinha com o qual comecei este texto.

Jamais estive preocupado com os comentários porque tenho a certeza que eles chegarão. Tranquilo pois. As pedras como a Guida diz são preciosas.

E contocomtodos para me indicarem o mais sensato caminho. Instalem-se nos vossos lugares. Ao leme desta nave caprichosa desejo-vos a todos boa viagem.
E a ti Nuno que comigo vais partilhar este quarto de vigia ao leme o meu obrigado desde já.

Daqui a três meses outros dois (eheheh) até parece o condomínio do meu prédio.
Eis 2009. E ela rola.

P.S. E sou ainda tão maçarico que introduzi este comentário no lugar da mensagem Mea Culpa e assim substituí o texto que lá estava. Nuno, mil desculpas e por favor coloca de novo o teu precioso texto.

Margarida Tomaz disse...

Ano Novo, vida nova. Por isso, aqui estou a tentar tecer mais um comentário que sinto parco, entre tão ilustres blogcontistas. Desculpem-me a mísera participação, mas Calíope deve ter lançado um feitiço à minha pena que se recusa a escrever. O presente comentário é apenas um acto boa vontade, perante o repto do colega Nuno, a quem aproveito para dar os meus sinceros parabéns e desejar que consiga fazer uma vasta colecção de perfumes oferecidos apenas a 31 de Dezembro.

Parabéns ainda pela nova face do blog. Assim, até que talvez o feitiço desapareça!... Gostei muito.

Adriano disse...

Puxa, meus caros!
Hoje não: são 3h45m e amanhã tenho de ir a um funeral. Será desculpa de mau gosto, mas é a que está à mão, infelizmente de mau gosto.
Margarida, Nuno e Armindo:Fico a dever-vos duas palavras. Mas entre avassalado e espantástico, hoje não sou capaz de mais nada dizer.
Adriano.

Guiomar Fernandes disse...

Nuno, hoje pairou sobre mim a dúvida de porque razão não tinha ainda comentado este conto. Vim reler (pensava eu) e cheguei à conclusão que não o tinha lido. Fiz confusão, perdoa-me.
Só posso dizer que a tua "Mea Culpa" me emocionou. Obrigada por este conto magnífico.

apsarasamadhi disse...

Penitencio-me pelo silêncio, pela apreciação lavrada que guardei para dentro (talvez por imposição da persona que sofre, não poucas vezes, de inexplicáveis inclinações de inibição quando o dizer queda no já dito). Porém, apologista do kairos, estendo uma vénia ao conto, ao contista, ou melhor, à escrita que nasce directa e impoluta, da Vida! (arrepios constantes pela mudança drástica entre os cemitérios que todos carregamos, somos ou, por vezes, visitamos e a sagacidade mordaz da verdade virada às avessas)