10/12/2008

11 – Um Português no Japão

Nota: as palavras japonesas que se seguem foram, na sua totalidade, inventadas pelo autor, pelo que é extremamente improvável que tenham efectivamente os significados que lhes são atribuídos. É por outro lado possível que, por alguma casualidade não prevista, tenham outro qualquer significado, eventualmente menos próprio, pelo que o seu uso em viagem é veementemente desaconselhado.

Tomboka Muraka. Foram estas as exóticas palavras que me acolheram, tão de chofre como as lanço agora nesta folha, ainda mal firmara os pés no oriental pavimento do aeroporto internacional de Xon-Ton-Kabom (é mais ou menos assim que se pronuncia, e não me sinto à altura de tentar desenhar os ideogramas correctos). Senti-me feliz, confesso. Sendo português, sempre considerei o mundo como a minha pátria espiritual, e facilmente me adapto a qualquer sítio onde vá, mas jamais esperara esta aculturação instantânea. Ainda trôpego da viagem aérea, arrotando com fastio a mal digerida sanduíche de mamífero não especificado, abatido à paulada num qualquer depósito de lixos tóxicos, que nos meios afectos às viagens aéreas se faz passar por uma refeição decente, observava com nauseada resignação o desfilar incessante de malas e sacos e mochilas, e outras coisas que no seu colectivo se designam por bagagem, e via de regra se caracterizam por não se parecerem minimamente com nada que nos pertença – quando a jovem oriental, quiçá uma gueixa, me brindou com uma inesperada vénia, um tímido sorriso, e o melodioso Tomboka Muraka.

Imitei o melhor que pude a vénia cortês, omiti por prudência o sorriso – eu não sou realmente mais bonito quando não sorrio, mas assusto bastante menos – e proferi o meu reverente Tomboka Muraka. Ela lançou-me um olhar penetrante, um olhar alagado de um espanto que logo cedeu a vez ao ressentimento, e depois a uma espécie de desprezo altivo, que me ficou a bulir no espírito, ainda depois de perder de vista, no meio da multidão, as suas costas que se afastavam. Um japonês idoso fez-me o favor de me despertar do meu devaneio, pelo processo de quase me perfurar o externo com o dedo indicador, manobra com que pretendia chamar-me a atenção para uma mala que era efectivamente a minha, e que completava entretanto uma triunfal segunda volta ao circuito. Tomboka Muraka, resmunguei-lhe, mas ele sacudiu a cabeça, penalizado, e afastou-se. Invadiu-me então a insidiosa suspeita de que ainda me faltava aprender muito, para me poder sentir em casa naquele estranho país.

Por todos aqueles primeiros dias da minha estadia em terras nipónicas, a frase foi-me pontualmente perseguindo, e, a par dela, a minha atroz ignorância. Aprendi de facto outros termos, como é meu hábito invariável, de cada vez que visito qualquer país. Aprendi, por exemplo, Gon-Ta, que significa “almoço”. Aprendi Gon-Zen (“almoço efectivamente comestível”), Zon Tihg Xam Veng (“os meus antepassados deleitam-se na honra deste encontro”), e Zon Ghah Vehong Gan Xalam (“importa-se de tirar o dedo do meu ouvido?”). Um outro português, que casualmente encontrei por lá, tentou ainda ensinar-me a tratar os veneráveis idosos pelo respeitoso título de Xin-Pan-Zhé, mas desconfiei que estava a ser desfrutado, e preferi ignorar a suspeita expressão. Dominei ainda outros étimos, mas sempre, ao longo da minha aprendizagem, me ia falhando o enigma inicial.

Que, diga-se, jamais deixou de me perseguir. A todo o passo, após um qualquer diálogo em que eu introduzia uma ou outra frase mais feliz, que me deixava orgulhoso da minha proficiência linguística, e me levava a achar-me já em condições de ser apresentado ao imperador no seu palácio, logo alguém me abordava, e me lançava o arrenegado Tomboka Muraka, prenuncio sempre de embaraços e humilhações.

Desesperei! Sem rumo nem tino, vagueei pelas ruas enxameadas daquela metrópole, perambulei sem destino pela miríade de celestiais jardins, e por toda aquela terra tentei perder-me de mim mesmo, da minha falha vergonhosa, da estúpida incapacidade de me mostrar digno de um povo que eu, como embaixador do meu próprio, visitava. Percorrendo por fim uma alameda de delicadas macieiras em flor, acabei por encontrar um cavalheiro, tão ocidental no vestir como japonês nas feições, que se curvou num respeitoso sorriso. Sabia já o que me esperava, e foi sem surpresa que ouvi o familiar Tomboka Muraka.

Estoicamente, preparei-me para me rojar aos seus dignos pés, suplicar humildemente o seu perdão para a minha falta imperdoável, oferecer em contrição o desagravo de vetusta lâmina que rasgasse ritualmente as minhas indignas entranhas, quando o meu olhar pousou casualmente sobre a sua mão direita, e a luz da compreensão brilhou de súbito, num clarão intolerável, surpreendente e ofuscante.

Com a vénia mais perfeita que fui capaz de produzir, estendi-lhe o meu isqueiro. O digno cavalheiro acendeu pausadamente o seu cigarro, e devolveu-me o lume, murmurando um cerimonioso Tomboka Arigato. Curvei novamente a espinha, e triunfei. Após uma semana de agonia espiritual, estava, por fim, aculturado!

1 comentário:

Armindo S. disse...

Ao desafio temático foi dada uma resposta cheia de sentido de humor. Pelo desafio, já de si, complicado da escrita, e num curto espaço de tempo em analogia com as partidas simultâneas de xadrêz: a exigir rapidez de resposta com habil execução, o meu agradecimento. Desejos de longa e boa viagem.Graças a todos vós a bola já rola.