16/12/2008

12 – Consumo

- Mamã, quero aquela boneca!
- Eu quero a Play Station Quatro!
- Compra! Compra! Compra! – gritavam as duas crianças, agarradas à barra da saia da mãe.
- Mãe, eu não posso não ter a Play Station Quatro! Todos os meus amigos já têm, por isso é que já não querem vir brincar comigo. Eu não tenho nada que preste.
A mãe desesperava e maldizia a hora em que os tinha levado consigo ao hipermercado. O local estava absolutamente lotado; tinha demorado mais de uma hora para conseguir estacionar o carro e quando conseguiu ia sendo trucidada por um outro condutor que pretendia o mesmo lugar. Andavam aos encontrões pelo meio da multidão alucinada na busca de presentes de Natal, especialmente brinquedos. Havia caixas rasgadas pelo chão, brinquedos espezinhados, crianças aos gritos (incluídos as suas), pais exasperados, casais a discutir. O ambiente era bastante hostil, embora o fosse em nome do Natal; a festa da família, época de paz, de solidariedade, de mostrar o amor pelo próximo.
Na secção de tecnologia, onde tentava escolher um telemóvel para oferecer ao marido, assistiu à discussão de mais um casal:
- És louco? Não temos dinheiro para comprar um palmtop desses!
- É sempre a mesma conversa quando eu quero comprar uma coisa para mim. Dinheiro para as prendas dos teus pais, da tua irmã, do teu cunhado, dos sobrinhos, etc, arranjas, não é?
- Para a minha família e para a tua, já agora. Mas o que eu vou gastar, com essas prendas todas, não chega ao preço disso. Não temos, mesmo!
- Mas tu não vês que podemos pagar em seis prestações? Ainda para mais, só começamos a pagar em Março.
A mulher ficou uns minutos em silêncio e recomeçou o diálogo num tom completamente diferente:
- Mesmo assim, Zé… Não sei, vai ser mais uma prestação, já estamos tão sobrecarregados. Não podias escolher um modelo mais em conta?
- Lizete, para comprar uma porcaria que não vale nada, não vale a pena. Poupamos cem ou duzentos euros, mas daqui a um ano já está ultrapassado. Este já é um equipamento como deve ser e está em promoção, acredita que está barato.
Lá acabaram por meter o palmtop no carrinho das compras e seguiram.
Ficou parada a ver o casal afastar-se. Ela não era assim, era muito mais comedida, usava o crédito com parcimónia. Não se iria endividar por um equipamento daqueles. Era verdade que já tinha gasto o vencimento e o décimo terceiro mês nas compras de Natal e nuns extras lá para casa. Talvez já tivesse usado o cartão de crédito uma ou duas vezes, não se lembrava bem, três, no máximo (a família é grande). Só iria usá-lo esta última vez, para pagar aquelas compras. O resto do plafond tinha de o reservar para pagar algumas contas domésticas que, por descuido, ainda não tinha pago.
Dirigiu-se à caixa, arrastando os filhos que continuam a gritar exigindo mais isto e aquilo.
- Qual vai ser o meio de pagamento? – perguntou a funcionária.
Entregou-lhe o cartão de crédito, maquinalmente pressionou o “ok”, sem sequer reparar no valor.
- Tem algum outro cartão? – questionou a funcionária.
- Algum problema com esse?
A empregada, simpaticamente, não respondeu, mostrando-lhe apenas o visor do terminal de pagamento electrónico: “NÃO AUTORIZADO”.

1 comentário:

Nuno Baptista Coelho disse...

“NÃO AUTORIZADO”. Um final como eu gosto, em cauda de escorpião, com a curta sentença da máquina a fazer as modernas vezes daquele seco anúncio de um fim do mundo, a morte de toda a esperança, o apagar final da tímida luz que ainda teimava em bruxulear no último vestígio de alma. Em versões mais clássicas, a mão descarnada escreve o nome do condenado, e vemos que o temido nome não é senão o nosso. “Não Autorizado” é uma coisa mais impessoal, e pelo menos tão terrível. E eu gosto de histórias de terror.

Quanto ao resto, é admirável a fidelidade com que conseguiste resumir a história da minha vida. Contrariamente ao que manda a tradição, a minha história acabou por ter um final mais feliz: consegui mesmo comprar o palmtop. O resto, todavia, permanece: não a consigo convencer a parar de gastar dinheiro em porcarias.