06/12/2008

O Quadro

Está atrasado e será apenas um floquinho de nada, mas aqui fica "O Quadro", enquanto me consumo um pouco a ver se engendro o "Consumo". Boas festas a todos. E obrigado pelo desafio.

O QUADRO

O quadro era uma coisa incómoda. Outras havia, claro. Do corte ao fazer a barba e logo no lábio à solidão ao longo da noite, passando por todas as bicas frias do dia, eram mais que muitos os incómodos rotineiros. Mas o quadro, o quadro passava-o dos carretos. Sempre ali, onde quer que estivesse, sempre o mesmo, e sempre nele um qualquer pormenor esquivo, seja na luz, linhas ou textura seja nas cores, formas ou moldura. Sempre o mesmo, salvo raros cambiantes inefáveis.
Uma das causas de semelhante mal-estar, mau grado a situação, era mesmo um compulsivo impulso pelas palavras estranhas, uma quase certa tendência para nelas rever a impotência de ser, sem a ele o ter ali, tão incómodo. Por vezes, tapava-o de um manto de indiferença. De tão diáfano, acabava logo por revelar tudo o que era manto e quadro atrás. Devia ser esconjuro, cena da vida feiticeira ou algo que o valha. Certo é que o incomodava como bolso vazio em dia de consumo. Outras, ignorava-o. Olhava-o como se visse ao espelho uma sombra qualquer. Cada vez mais velho, nele, cada vez mais importuna, a sombra no quadro. Tremia ou mantinha-se hirto, à laia de treinador de bancada ou bruxo nos holofotes da televisão. Por isso, vezes outras suspirava, umas fundo algumas nem tanto, fechando os olhos.
Outro dos motivos não era, porque tanta certeza não há, mas bem podia ser a polissemia do termo. Quadro. Quadro preto é infância, quadro eléctrico é pai, quadro só é parte de moto, é conjunto, é panorama. Quadro é um aborrecimento de lados iguais, um passado fechado, um presente que já não é, um futuro recente por definir. Quer dizer, tudo junto, o dito era, é, capaz de o pôr de quarentena assim que nele punha a vista, o pensamento ou o sonho. O quadro era uma coisa tão incómoda quanto as palavras.
Mudou-o de parede. Mudou depois de casa. Julgou deixá-lo no sótão, na cave e ainda no arrumo das ideias de barbas, junto à lenha do Inverno. Tentou tudo, até esquecer o alfabeto ou não contar mais do que dez dedos. Procurou após mudar de destino, tentativa primaveril de se desfazer de si, inútil acção. Ali tinham de ser, tanto quanto aqui. Ele e o permanente incómodo do quadro à sua frente, nos limites da armação por colocar no começo das medidas a tomar.
Pronto. Cada decisão ficava logo ora longe da vontade ora a meio caminho da consciência ora demasiado à mão do coração. E era aí, invariavelmente, que lhe vinha o dito corte ao fazer a barba e logo no lábio. Postos os óculos, alargava-se o quadro nas suas três e vulgares dimensões, entre hábito e cafés frios, arrastando-se como um gerúndio aos balcões de ocasião.
E pronto, sem ser assim. Porque lá dentro, no fundo da íris dos olhos no centro do quadro, embaciada embora pelo chuveiro matinal, brilhava uma mesma teimosia pós-duche, uma das tais palavras constantes, uma nuvem de significados, um qualquer sonho por cumprir. Hoje é que é. Hoje é que há-de ser o que quer que seja que se deseje, deseja. Hoje. O quadro era sempre este, salvo raros cambiantes inefáveis.
Por isso o incomodava, tão provável era com ele passar-se dos carretos, baralhar as linhas de que se cosem os cozidos no fogão a lenha do politicamente correcto. Primeira, segunda, terceira. Domingo, segunda, terça, o quadro, a quarta, a quinta e a sexta, assim houvesse motor para tanto. No fim, restava da semana o roncar da infinita teimosia atrás mencionada, o querer ser além do fogo, do faz-tudo e até de conta, sem nada fazer.
Ou, fazendo o nada que se tem cada dia a fazer, fazia o tudo que o quadro lhe ditava: era homem, e o quadro só o enquadrava nos limites que a vida lhe ditava ao espelho. Fosse quadro e não homem, faria o mesmo.

Sem comentários: