02/01/2009

- Que raio de chuva miudinha, sempre a cair.
- Nem serve para derreter o gelo.
- Se ao menos furasse esta neblina.
- Mas conserva os fungos sem os congelar…
- Esta noite sonhei a coisa mais absurda que se pode imaginar.
- E recordas o sonho todo?
- Sim, tenho um caderno à cabeceira onde registo os meus sonhos, de há uns anos a esta parte.
- Já deves ter um livro enorme.
- Não, eu não sonho com tanta frequência. Embora alguns dessem uns filmes curiosos.
- Pois eu, nunca tive tal hábito de anotar sonhos. De resto, os meus são mais do género pesadelo e isso quanto mais para trás das costas melhor.
- De qualquer modo, é engraçado voltar a recordar imagens que de outro modo se dissolveriam na névoa da memória.
- Em tempos cheguei a conceber que os sonhos teriam a função de apagar as memórias inúteis, já vividas, para dar espaço aos pensamentos que vão chegando a cada novo dia, mas agora até isso já me parece pouco crível. Nem sei o que pensar. Este mistério dos sonhos é primo do grande final.
- Desse que só se sabe quando se viaja ou nem isso. Caso a luz se apague permanentemente.
- Conta lá, então, o teu sonho mais recente.
- Estávamos numa esplanada à beira do deserto. Para começar, a ideia de beira de deserto, já toca o absurdo, como se pudesse haver uma fronteira – daqui para lá é deserto puro – bem delimitada com placas e tudo.
Fazia um calor dos diabos, daquele de estrelar ovos nos tejadilhos dos carros, e tu estavas à minha frente, contemplando a linha do horizonte. Enquanto bebias por uma palhinha um copo de refresco de limão e contavas o teu mais recente pesadelo, rias-te da inverosimilhança:
- Que raio de chuva miudinha, sempre a cair.
- Nem serve para derreter o gelo.
- Se ao menos furasse esta neblina.
- Mas conserva os fungos sem os congelar…

4 comentários:

Adriano disse...

O Torga fala em estrelar ovos sobre os carris de Trás-os-Montes. Mas és de facto rápido a dizer o que há a dizer, quem me dera!
Adriano

Margarida Tomaz disse...

Conheço pessoas bem capazes de montar uma esplanadinha no meio do deserto, servindo sumos e batidos frescos!!!

Gostei especialmente do encontro em terra tão árida.

Guiomar Fernandes disse...

O deserto é tão real que é, de facto, iverosímil. Tal como a própria vida...

apsarasamadhi disse...

A íntima união desses dois hemisférios (o sonho e o deserto)surge límpida, pura e ímpar!