18/01/2009

Acabara de tocar à campainha que soou como um telefone do início do século passado e instantaneamente, mesmo de rompão, abriu-se a porta. Toque de magia, até me assustei.
Mal tive tempo de me desviar, tal a presença de um corpo de mulher em movimento, bem pelo dobro do meu, que quase me atropelou.
Ia pedindo para eu esperar um pouco e dissera sempre a correr:
- Já venho, não me demoro mesmo nada. Queira aguardar aí na sala, à direita.
No patamar da escada, enquanto dizia isto, parecia ir tirar o pai da forca. Mal olhei para baixo e já tinha contornado o vão da escada, descendo quatro a quatro os degraus de pedra, ainda pensei que se estatelava, espantada com a agilidade de tal corpo.
Perplexa empurrei a porta semi-encostada, fechei-a atrás de mim e dirigi-me para a minha direita, entrando numa sala de espera decrépita, com uma mesinha ao centro, carregada de revistas velhas como em qualquer sala de espera de um consultório vulgar. Repleta de cadeiras a toda a volta, com uma janela ao fundo, a sala já tinha conhecido melhores dias, sintomas anacrónicos da morfologia apresentada: um esgaçado papel de parede todo em volutas e caracóis dourados, a remeter para barrocos clandestinos. Um candeeiro de pé de latão já ferrugento, imitação desfeiteada de bronze de outras eras ostentando no alto um envergonhado abat-jour verde seco, comido pelas traças nalguns pontos, e com franjas a condizer com o papel de parede. Um relógio de pêndulo cansado espalhando lentos tic-taques e uma mesa com um telefone em cima completavam a decoração da sala.
Pela janela vislumbrava-se uma dupla fila de plátanos, todos eles descamisados, tiritando ao sol de Inverno.
O telefone analógico carregava um cadeado no anel de marcação para impedir qualquer abuso. Recordava-me que já não se via telefones destes há pelo menos uma década. A concorrência das companhias telefónicas privadas tinham exterminado gerações destes telefones. Esta raridade devia estar protegida por qualquer movimento ecológico.
Tocou a campainha. Parecia o som de um filme americano, talvez o Casablanca, ou outro qualquer com detectives. Fui à porta num papel assumido de secretária de um negócio de patrão ausente. Um engano, nada à porta. Pelo intercomunicador ninguém responde. Volto á sala e levanto o auscultador do telefone e também nada se ouve excepto o bip normal. Também o toque já tinha terminado. Volto a sentar-me e pego numa revista mas o olhar prende-se na copa dos plátanos remetendo o pensamento para os últimos eventos na minha vida.
O raio do toque de novo. Volto à porta abrindo-a e novamente o vazio. Rápido ao telefone, nada de novo. Estarei a sofrer alucinações? Bem sei que as recomendações eram bombásticas. A Alice Mota tinha-me contado que esta vidente era poderosíssima, mas tanto poder assim, logo à entrada, até arrepia. Eu nem acredito nestas coisas. Ao que uma pessoa se sujeita após todos os desenganos da ciência encartada de médicos nacionais e estrangeiros. É o desespero, o desespero puro e duro. Eu aqui pelo Humberto, se ele não desaparecer e se se recompuser bem posso passar por este enxovalho.
Que farei eu sem ele? Ai, mal de mim.
TRIMMMMM.TRIMMMMMM.TRIMMMMM
- Está lá?
Será que existe outro telefone?
Era a voz da vidente mas ela ainda não voltou a entrar. Aqui nesta posição daria por ela passar. Ele há coisas...
Finalmente uma chave na porta.
Agora sim era ela.
Todo o esplendor de um volume enquadrado pelo umbral:
- Queira desculpar a minha saída intempestiva mas ninguém me poderia ter substituído nesta tarefa. Este saiu-me pela janela e voou para o terraço do prédio em frente. Tive de agir rápido. Enquanto estão atarantados há boas probabilidades de os recapturar. Este é a primeira vez que foge e teria ainda assim menos pena de o perder. O outro sim é que é um papagaio perfeito. Se ouvisse como ele me imita.

2 comentários:

Guiomar Fernandes disse...

Uma história bem contada, com suspense q.b. e uma franca gargalhada final.

Adriano disse...

É nisso que, entre outras coisas, o Armindo é exímio. O que conta acaba no inesperado e, quase sempre, o inesperado é hilariante.