17/01/2009

Desta vez, permitam-me, vou sair um pouco das regras. Trata-se de um conto biográfico, singela homenagem a Mariana Saragoça, que partiu fisicamente esta semana, mas que ficará para sempre nos corações de quem com ela privou e de quem tenho a honra de ser sobrinha.

A Cumpridora de Sonhos

Nasceu a sorrir, numa pequena vila do Alentejo, com cheiro a alecrim e alfazema, no final da década de trinta, do século passado. Em plena ascensão do regime salazarista, foi educada por um pai com profundas convicções comunistas e uma mãe fervorosa devota católica. Divorciaram-se quando tinha apenas quatro anos, passando a viver com o pai, durante o período escolar, e com a mãe nas férias.
Cresceu entre dois mundos antagónicos, que lhe deram uma panóplia de valores, entre os quais aprendeu a escolher os seus próprios. O pai incutiu-lhe um sonho – a liberdade. Queria-a instruída, culta e independente. Sempre lhe recomendou que não casasse; avisou-a várias vezes que os homens não prestavam (ele bem sabia do que falava).
Ainda assim, casou, da forma mais convencional, com um homem tradicional que tentava mostrar-se liberal. Tiveram duas filhas. Enveredou pela carreira docente, leccionando o verdadeiro amor da sua vida: a língua portuguesa.
No entanto, o sonho continuava por cumprir. Não se tratava da sua liberdade pessoal; de uma forma geral, era a liberdade do seu país e, em particular, a liberdade de ensinar, especialmente de dar à população mais desfavorecida a possibilidade de se poder expressar livremente na sua própria língua. No início da década de setenta, ainda tentou; fez parte de um grupo clandestino de alfabetização que, pouco de pois de começar, foi descoberto pela PIDE e, naturalmente, foi cancelado.
Veio o vinte e cinco de Abril, arregaçou as mangas e deitou mãos à obra, em Trás-os-Montes e no Alentejo, organizou programas de alfabetização e começou a cumprir o seu sonho.
Percebeu, então, que atrás de um sonho vem outro, que torna o anterior mais pequeno. Portugal, país que amava profundamente, não chegava para fazer por ele tudo o que queria. Entretanto, o seu casamento colapsou. Partiu numa cruzada pelo mundo, espalhando a língua portuguesa por três continentes: Guiné-Bissau, Moçambique, Suécia, Marrocos, Angola, Austrália, Timor e França. Foi cumprindo o seu sonho, ensinando a sua língua e o seu país, e sonhando novos sonhos. Reconverteu-se ao catolicismo e reunificou os seus valores de infância. Iniciava sempre só, cada nova etapa, deixava inúmeros amigos, sempre que partia.
Numa curva do destino, cruzou-se com a doença, que a obrigou a cessar a sua actividade profissional. Lutou com bravura, fé e sempre com alegria. Matou dois cancros, o terceiro foi mais forte que ela. Nesse dia, embora já não falasse, ainda sorriu e partiu serenamente embalada no sonho de uma outra vida em que acreditava profundamente. Que cumpra também este!

4 comentários:

Adriano disse...

Não vejo em que medida sai este conto das regras, pois a biografia é um género tão válido quanto qualquer outro. O que importa é saber contar. E isso creio que fica claro no texto. Força!

Margarida Tomaz disse...

Lá dizia um professor meu que "a escrita de sucesso é a escrita onde me revejo".

Margarida Tomaz disse...

Quando alguém que nos é querido parte, há sempre uma estrela que brilha com mais intensidade no céu. Força Dulce.

Armindo S. disse...

É triste dar-te os parabéns por ocasião tão madrasta. São as incongruências do destino. Os parabéns pela escrita bem contada, bem entendido. E que te seja possível transpor este momento sem demasiadas penas é o que te desejo nesta hora.