31/01/2009

A mudança

Há um fantasma em minha casa. De longa data o sei, e devo dizer, contemplando com retrospectivo embaraço a minha ingenuidade de antanho, que ele nunca até hoje me assustou, antes o encarei sempre com aquela bonomia eivada de uma reverência ligeira que é uso votar aos tesouros com que a família ao longo das décadas foi forrando os seus armários, ainda que sejam esqueletos os tais tesouros. Isso pouco interessa ao caso em apreço, uma concubina de alta estirpe vale tanto ou mais que um brasão, e um fantasma de família a todos esses sobreleva, maxime no caso de se apresentar competentemente provido dos atavios usuais, as correntes e a espada e o traje demodé, e se for possível munir a avantesma de um quilt e gaita de foles, temos a perfeição. Não, nunca tive medo do meu fantasma.

Certo é que faltam à minha alma penada algumas condições que via de regra se tomam por basilares, como seja a de assombrarem uma vetusta e delapidada mansão, entre cujas paredes terão os seus materiais avatares sofrido as agruras deste mundo, que vez por outra pede meças ao mais elaborado dos infernos. A ideia de eu ter em casa um fantasma era regularmente reduzida à mais ínfima expressão do ridículo pelos amigos da casa, sob razão de me ter eu mudado para cá há coisa de poucos anos, na mesma altura em que foi dada por finda a construção da casa, completa como nós a planeamos, fazendo este “nós” as vezes da unidade familiar, a esposa e os filhos e mais parentes, e até eu cheguei a dizer uma ou outra palavra, não constando embora dos autos que tenha alcançado ser ouvida. Para encurtar de razões, e citando aqui um autor não publicado (que, tal como os espíritos, também os há), não há fantasmas numa casa nova.

Mas há um fantasma na minha casa, e pouco bastam os argumentos anteriormente aduzidos para me tirar desta convicção. A explicação, digo eu para quem me quer ouvir (costuma ser o frigorífico), a explicação está na mudança. Devíamos ter feito uma mudança selectiva, e eu recordo que cheguei a disser isso. Escolher o que queríamos levar, em vez de arrebanhar sofregamente tudo o que não queríamos deixar para trás. As mudanças são momentos de purificação e recomeço, em que se deve trazer do passado aquilo que realmente importa, e alijar o peso morto, tudo o que anda a reboque da nossa vida só por não saber fazer mais nada, e não termos nós a paciência de lho ensinar. Não foi assim essa mudança, do que resultou ficar a casa nova assombrada por um vetusto fantasma.

Mas, volto a repeti-lo, eu nunca tive medo dele. Os fantasmas, dizia eu com uma segurança digna de Voltaire, são apenas projecções de nós próprio, das nossas falhas e insuficiências enquanto pessoas racionais. O meu fantasma, racionalizava eu, mais não era que o espectro dos meus erros passados, dos ainda menos desculpáveis acertos do presente, dos meus traumas, das minhas lutas, de tudo, enfim, que alimentava o meu orgulho e a minha culpa. O meu fantasma nunca me poderia assustar com as suas carantonhas, pois que tinha a minha cara.

Agora estou assustado, é sem rebuço que o confesso. É banal o que me aconteceu, apenas o encontrei esta noite, completo com as suas correntes e esgares e a panóplia de efeitos fantasmagóricos. Preparei um sorriso condescendente, mas o sorriso morreu sob um olhar verde e baço, um olhar de cadáver resignado a ver através de olhos putrefactos, olhos que semelhavam um monte de algas escorrendo de um recife. A cara, repleta de imperdoáveis vícios, alagada de ternuras sem nome, escorria para mim como um bolo de aniversário sobre o qual alastrasse o fogo de velas não contidas, talvez por arder já no inferno o celebrado aniversariante. A cara era hedionda de se ver, e por uma razão suprema: não era a minha cara.

Não era a minha cara. O meu simpático fantasma era de facto uma coisa infernal, um demónio das trevas que mais não queria senão aprazar a minha alma às profundas de lava e carvões e oportunidades desperdiçadas. Tenho a vida hipotecada a um incubo, e com a agravante de se tratar da presente vida, aquela em que eu acredito. E custa-me contudo a crer que isto seja um efeito da mudança, estou mais em que a coisa me teria assombrado, fosse lá onde me encontrasse. Mas não me perdoo por o não ter exorcizado, na altura em que mudei.

Há um fantasma em minha casa. Devo confessar que, pela primeira vez na minha vida, estou bastante assustado.

8 comentários:

Adriano disse...

Caro Nuno,

Conto com a vida para nos cruzarmos ambos e todos à volta de uma "vodca com gelo", prelúdio de uma tertúlia amiga.
A morte, claro, creio que nenhum de nós a pode desplanificar. Por mim, e já o disse a quem de direito, gostaria que na cerimónia se ouvisse o "Born To Be Wild", dos Steppenwolf, ou o "Smoke On The Water", dos Deep Purple, ou uma faixa qualquer do "Por Este Rio Acima", do Fausto. Não interessa, até porque concordo que uns rissóis e umas bejecas já davam para "aligeirar" as exéquias, como dizes...
Até lá, lagarto, lagarto, lagarto, espero bem que continues a escrever. Ou que continuemos todos a fazê-lo, até porque a "bola de neve" me parece agora imparável, parafraseando o Armindo. Só que tal me (nos?)traz uma dificuldade outra: conseguir evitar que nos limitemos a acalentar o ego de cada um de nós.
Por isso, e sempre a sério, fico sem saber explicar duas coisas: primeiro, por que "fantasma" gosto eu mais do teu "Mudança" do que do também teu, e igualmente bem contado, "Boa Noite, Amor"; segundo, como é que hei-de ser capaz de continuar, quando todos me dizem estar tudo muito bem e contagiante, sendo a escrita uma dor?
Ainda por cima, o meu sporting empatou hoje.
Vá.
Força aí, Nuno, e todos.

PS.: Não sei o que se passou, mas se este comentário surgir em duplicado, a culpa é minha.

Armindo S. disse...

À medida que vos desvendo pareço um puto em manhã de Natal. Agora o Adriano deu para lançar pérolas para cima de um tesouro.Juro, Adriano e Nuno e já agora aos restantes que eu, inicialmente, não queria entrar pelos elogios desnecessários quando a confiança em quem críamos era já bastante. E desculpem a arrogância com que o digo: se não vos conhecesse e em vós confiasse ou não confiasse em quem vos conhece não estaríamos aqui.
Celebrar a vida com um conto como A mudança e partilhá-lo como quem respira, com humor e já agora com a sua carga de dor também é prémio para quem o pode ler. O humor, aliás, pode sempre ser um excelente cortinado. A inteligência, essa reconhece-se no bem escrever.
Tornar um comentário num espaço reflexivo, de primeira, enfrentando a morte numa pega de caras, e falando com naturalidade do mais que surja neste tempo em que tudo o que é de qualidade tem de ser "clean", é tudo o que - como leitor - peço e é seguramente mais que um simples comentário.
Seguidamente toda a minha esperança no repto do Adriano, mas para mim sem gelo s.f.f., para continuar oral e presencialmente o prazer que me dá estar convosco aqui.
Como já devem ter reparado este é o local apropriado para me ir desnudando. Já viram o quanto sou invejoso e arrogante. Esperem pelo resto se forem suficientemente "mirones". Asseguro-vos que é uma imagem bem pior que o fantasma do Nuno. E tudo porque quando morrer quero ir nu, afinal, como quando aqui cheguei.Como disseste:
"As mudanças são momentos de purificação e recomeço, em que se deve trazer do passado aquilo que realmente importa, e alijar o peso morto, tudo o que anda a reboque da nossa vida só por não saber fazer mais nada, e não termos nós a paciência de lho ensinar."

Margarida Tomaz disse...

Este conto trouxe-me à memória a célebre frase "Nenhum homem é uma ilha" e a lapaliçada "ninguém está só". Talvez porque um fantasma ande sempre connosco. A nossa história, a nossa tralha, o que não gostamos, os nossos monstros e as nossas certezas, e por causa delas todos havemos de chegar ao nosso destino, parafraseando Saramago, que não tem feito outra coisa senão parafrasear a história do homem que é o mesmo que parafrasear outros...

Mais uma conto, escrito com a argúcia de quem sabe o que quer fazer pensar, pôr-nos a pensar em profundidade, sentados à mesa global da superficialidade. No caminho do bem escrever e do bem contar...

Margarida Tomaz disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Margarida Tomaz disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Margarida Tomaz disse...

Se receberem muitos comentários repetidos, meus, não se espantem. O meu sonho era tocar piano e sempre que apanho tecla à mão teclo...

Margarida Tomaz disse...

Também não se espantem se eu nos próximos largos tempos não vos contar nada. Estou a trabalhar num projecto deveras importante, de investigação-acção, que talvez me leve a alguma pista do caso Freepor...? ou Freeport...?

Divirtam-se mas bebam antes um bom vinho branco. Vodka é dose!...

Nuno Baptista Coelho disse...

Adriano, Armindo, Margarida, em primeiro lugar, obrigado pelos vossos comentários. Em segundo lugar (e talvez devesse ter vindo em primeiro), muito obrigado por comentarem, o que é talvez parecido, mas não é igual. Aquilo que mais me agrada neste projecto (ou ideia, ou tertúlia – substituir a palavra a gosto), é precisamente isto, esta conversa que vamos tendo, limitada pelas disponibilidades que a vida nos vai impondo (a propósito, Margarida, boa sorte com os estábulos de Áugias), mas que ainda assim vai arranjando tempo para acontecer. Se os contos servirem de ponto de partida para tal, já terá valido a pena escrevê-los.

Não vou tentar responder a cada um dos comentários, porque o meu teclado é como o da Margarida – tem muitas letras, e parece que querem sempre saltar todas cá para fora. Seja como for, não convém que acabem os comentários por ser maiores que os contos. Adriano e Armindo, esse vodca começa a soar-me cada vez melhor (e decerto haverá um vinho branco à disposição de quem o preferir). Muito poderemos discutir nessa altura.

Por mais que deseje ser sucinto, não consigo ainda deixar de lembrar à Margarida que a citação “Nenhum homem é uma ilha”, que faz de prefácio à mais famosa das obras de Hemingway, termina da seguinte forma: “Por isso, não perguntes nunca por quem os sinos dobram. Eles dobram por ti”. Haverá aqui o ligeiro eco de um fantasma?

A todos, um grande abraço.