16/01/2009

NÃO SE MUDA JÁ COMO SOÍA

Que todo o mundo é composto de mudança, toda a gente o sabe. Até Maria Vinagreira, sem nunca ter lido poesia e de Camões saber só o ter sido pobre, sorte madrasta de muitos, pelo menos de todos os da criação dela, e zarolho, azar de poucos, é verdade, maior ainda quando calha a quem nada de seu segura, como é quase sempre o caso. Agora mudar, fizera-o vezes sem conta, como se a Lua lhe houvesse nascido do lado errado. Coisa certa, até porque de menina sentia não ser bom sinal pôr-se de rabo a jeito para quem quer que fosse.
Mudara dos bancos da terceira classe para os campos do Monte da Maúcha, pois o velho, pai de muitas e esforçadas contas, julgava ser-lhe, a ele como à filha, mais proveitosa a apanha da azeitona do que o decorar da tabuada. Mudara, depois, de debaixo das saias da mãe para as mãos do seu homem, de rapariga para mulher sem sequer vinte anos ter. Numa enxurrada da vida assim, mudara ainda de esposa só para mãe também, três filhotes a mudarem-lhe de rajada e de pantanas as sossegadas aflições do dia-a-dia. Por último, mudara da pacatez alentejana para a esperteza saloia, então ainda nas margens do bulício suburbano.
“Quem não arrisca não petisca”, dissera-lhe o marido. Levada por semelhante entusiasmo, lançou mãos à vida, procurando não dar cavaco à saudade. Contudo, as coisas só mudaram para efémero melhor quando recuperou a alegria nos olhos da filha mais velha, por uns tempos deixada longe, ao cuidado dos avós. Reunida a família, logo a viu aumentada de dois outros rebentos. A pouco e pouco e sabe-se lá como, foi-se então tecendo uma rodilha de sub-reptícias mudanças em torno de si e de tudo. Não matavam, mas cada uma das linhas de cada hoje a enleava numa moinha de desencanto aceso, tão vivo que a páginas tantas acabou até por mudar de crença, sem se aperceber que as velas da nova religião lhe iam apagando o brilho juvenil. Souberam-no guardar as filhas, depois, mas esse será outro conto, talvez.
Ele era o homem a beber, ele era a filha de alegres olhos malandros a namorar às escondidas, ele era o filho mais novo a fugir. Naquele tempo, já todos se perdiam. Um nos copos, cansado da oficina e do bedum dos sapatos dos outros, a rapariga na miragem do amor, o rapazola na ficção da viagem roubada em consecutivos panfletos de heroína. E foi a galope que o primeiro dissipou o pouco que tinham, a segunda se casou com um magricela de bolsos vazios e o terceiro se viu detido. Num ápice, mudou de esposa, mãe e dona de casa para tudo isso e ainda sogra, mulher-a-dias, costureira e operária numa fábrica de bolos. E passou, religiosamente, a deslocar-se todos os domingos a Lisboa, carregada de sacos de plástico a abarrotar de roupa, tabaco e comida para o filho. Seria mariola e estava preso, mas era seu.
Dado o incómodo do autocarro a horas impossíveis e do caminho a percorrer a pé, única alternativa à roubalheira dos táxis, o genro começou a levá-la de carro. Uma seca, horas ali à espera do fim da visita, com os cafés fechados e as prostitutas do Parque Eduardo VII a assediá-lo. Procurou persuadi-la a trocar o táxi pelo metro. Sempre era mais barato e...
– Metro?! Nem pensar! Sei lá andar de metro! E aquilo está cheio de ladrões. Ná. Nem pensar.
– Ora essa! De metro farto-me eu de andar e nunca vi nada disso. As coisas não mudam assim, D. Maria...
Acabou por se deixar convencer. Afinal, era só mais uma mudança. Da primeira vez, o genro acompanhou-a, para lhe mostrar o que fazer. Nada de muito complicado. É calma, a cidade ao domingo. Comentavam isso no regresso, já com os sacos mais leves, enquanto percorriam o túnel de saída, em Entrecampos, sem ninguém por perto, salvo uma senhora toda bem-posta e de mala a tiracolo, que os precedia desde as bilheteiras. De repente, um encontrão, estardalhaço de roupa suja e tupperwares vazios por terra, mãos na cabeça e gritos aflitos. Um magano qualquer atropelara-os em passo de corrida e, de esticão, roubara a mala à senhora. Galgava agora os degraus, logo desaparecendo num clarão de espanto.
– Estás a ver, estás a ver? Um carteirista! Eu bem te dizia! Tudo muda, ouviste? O metro mudou, é um antro de malandros! Mete na cabeça que tudo muda e já nada muda como era costume.

3 comentários:

Margarida Tomaz disse...

Olá!...

Alguém ousou mudar 1º e não deixar escapulir a mudança, ainda que tudo esteja sempre em constante mudança...

Tudo muda mesmo e já nada muda “como soía”. Nós é que pensamos sempre que não, apesar de defendermos que “a experiência é a mãe de todas as coisas”. Um retrato da vida que vai evoluindo e escapando às regras e ao previsível, mas não à mudança.
A escrita pode ser essa outra linha, que liga todas as mudanças e dá sentido à vida.
Um tema demasiado caro ao Lusíada, que enfrentou todas as mudanças...
Um conto que prepara mudanças na arte de contar...

Armindo S. disse...

É também por isto - pedaços de literatura em estado puro - que jamais me arrependerei de ter colocado um dia o raio da bola a descer a encosta: "cada uma das linhas de cada hoje a enleava numa moinha de desencanto aceso". A mudança a criar o seu desenrolar.

Guiomar Fernandes disse...

Já nem a mudança é o que era... O conto revela a capacidade de adaptação à mudança e à mudança da mudança, escrito da forma brilhante a que o Adriano já nos habituou. Parabéns.