06/01/2009

Escritor… por causa de um sonho…

Por incrível que pareça, hoje vou publicar neste espaço um texto. Afinal, não me podem acusar de negligente, ainda que vos apresente uma verdadeira trapalhice. Conto... crónica... cantiga de escárnio e de maldizer... o que quiserem. É a minha costela bocageana, sem qualquer pretensão a vate. Amanhã nem sei se continuarei cá. Do lado de lá dizem que não há requisitos. Somos esperados de qualquer maneira: nuzinhos, em fatiotas armany ou outros que tais. E nem sequer sou grande admiradora de Elmano Sadino. Amo sim a sua cidade natal, que enriqueceu o meu imaginário de infância e me deu a conhecer Tróia, sem o Azevedo do Belmiro, com as suas dunas magníficas, a vegetação selvática e as tabuínhas de madeira para aceder à praia.
Mas aqui escrevem-se contos, nas asas do sonho de cada um. Por isso, aqui vai:
Nesta existência, onde somos personagens e presumíveis donos dos nossos próprios sonhos tantas vezes desfeitos, se existem coisas inexplicáveis para esquecer, outras há que nos põem a pensar e algumas até a sorrir. Pois foi a sorrir que acordei e que me sentei a escrever, lembrando-me das diligências de Poirot, na pista do pormenor. Estávamos no ano da graça do Senhor, da Era de 2018, dia 26 de Maio, em horário nobre informativo, frente ao bibelot de eleição das nossas casas, muitos nas ruas em ovações aos recém euro-championships, quando nos entra pela casa adentro o parlamento, em mais um momento de “politicae chronicorum”, saciando-nos com um filme inédito, de realizador desconhecido. O argumento do filme fundamentava-se nas acusações de um primeiro-ministro a um partido da oposição, segundo o qual o dito partido andaria a pôr em causa a segurança do seu país, pelo facto de defender a reactivação do movimento das cruzadas, numa operação cirúrgica, mas com foros de lusitanidade, com elmos de prata e broquéis brasonados, cravejados de diamantes e armaduras em malha de fibra óptica. O dirigente partidário, um conservador e praticante de espadachim, sentindo o quanto os caminhos de um homem podem ser perversos por defender, com garra, o brio da Nação, põe em causa o verniz do referido ministro, pelo que lhe chama de covarde, momento transmitido em pleno horário nobre. E, se na história dos homens fomos habituados a imaginar heróis capazes de nos conduzirem ao “paraíso perdido”, ou pela inteligência ou pela força ou pelo amor, neste filme inédito, cada uma das personagens se recolheu às suas casas e os espectadores concluíram que era melhor aguardar pela palavra do próximo Diário da República ou pelos despachos e circulares que nos últimos tempos vinham atafulhando as suas caixas de correio. Este indelével episódio, tê-lo-ia esquecido no dia seguinte, não tivesse eu despertado numa manhã pachorrenta, com as imagens de um sonho em sonos ocorrido, onde eu era personagem figurante, num espaço espantástico (neologismo de direito) e cujas imagens persistiam em ficar retidas na minha memória visual. Tudo se passava num clima religiosamente ameno, onde nada acontecia, a não ser a boa convivência, a uma longa mesa de repasto sentada, juntamente com outros presentes que não pode observar, porque à minha frente tinha apenas um grande plano de pormenor: D Duarte Pio, duque de Bragança, defronte sentado, como irmãos, num jantar semanal de família. D. Duarte, no seu traje secular de pastor cristão, parecia ter atravessado séculos da História, e ali estava pacificamente, tão rotineiramente natural, como se tudo não passasse de um teatro, reduzido ao grau zero, cujas personagens já não são capazes de fazer outra coisa senão aquilo a que estão habituadas. E esta tranquilidade, surpreendentemente absurda, em nada atrairia os cinéfilos, se entretanto algo de insólito não viesse perturbar a monotonia: alguém passou por detrás de D. Duarte e lhe atira uma bofetada e desaparece. Impune, o agressor anda por aí, pois a imagem de pormenor que retive foi a do movimento do braço. D. Duarte, expectante, não se moveu e nem sequer deu para perceber se tem algumas culpas no cartório.
O busílis deste sonho, procurei-o no mais recôndito de mim. Não obtendo resposta, relembrei os mananciais freudianos e também aí não encontrei qualquer pista. Decidi tomar um café para despertar, na pastelaria mais próxima. Entre a confusão do pequeno-almoço matinal e as primeiras notícias que bruxuleavam de cinza, em corpos soturnos e elanguescidos, a televisão passava as novidades repetidas: o clima descontrolado, transformando Portugal num país tropical, a crise financeira da responsabilidade de ninguém e que todos continuam a ter de pagar, a futebolização e o slogan “forrça Portugal”... o desemprego... a ilusão de que afinal somos é uns esbanjadores e o problema está somente no gastar e não no ganhar... as catacumbas labirínticas da justiça, o negócio das armas... as vítimas da fome e da guerra... a rotina... o grau zero...

4 comentários:

Armindo S. disse...

Fantástico! É um sonho até pela surpresa. Que delírio medonho, rocambolesco, definitivamente surreal.

apsarasamadhi disse...

Recortes irreais que nos encaminham, pela jocosidade do estalo a D. Pio (quem dera ter sido essa lesta mão, mas não no sonho!), à proficuidade da escrita, mãe de todas as
(i)legítimas loucuras!

Adriano disse...

"Uma verdadeira trapalhice"? Ora essa! O texto não tem nada de trapalhão e quem assim escreve não o faz, com certeza, apenas "por causa de um sonho". Força. espero novos contos da Margarida.
Adriano

PS.: Também gosto de Setúbal, mas admiro mais o poeta Bocage.

Guiomar Fernandes disse...

Será que em 2018 veremos Gil Vicente e Kafka reencarnarem num mesmo corpo? Talvez num admirável mundo novo, que de novo não terá muito e de admirável teráo estalo ao D. Duarte. Admirável é mesmo este conto. Força Margarida!
PS: Gosto muito da cidade e do poeta.