20/01/2009

Mudar... ou talvez não.

Há uma certa altura na vida em que nos cansamos particularmente de ser quem somos. Ela estava nessa fase. Não havia uma razão, em especial, mas tudo a aborrecia nela própria; a aparência física, a forma de estar, o modo como falava, o local onde vivia, enfim, tudo.

Queria mudar, ser outra. Sabia que era mais provável que lhe saísse o euromilhões do que conseguir transformar-se, no entanto, a ideia não lhe saía da cabeça.

Um dia, ao visitar as suas sobrinhas, crianças de tenra idade, passou um bom bocado a observar a sua caixa de bichos-da-seda. Estavam quase todos nos seus casulos, crisálidas à espera da libertação. Como seria bom se pudesse fazer o mesmo… Fechar-se por uns dias e, depois, surgir esbelta, crisóptera e voar sobre o mundo, irreconhecível e adorada pela sua beleza.

- Tia! Tia! Estás a ouvir?

Só então reparou que as duas crianças clamavam pela sua atenção e que se tinha deixado embalar num sonho infantil e disparatado.

- Sim, queridas, digam.

- Que tens? Estás estranha, hoje. – Disse a mais velha.

- Nada, a tia estava só distraída.

- Queres brincar connosco? Vamos brincar ao Peter Pan.

- Só se eu for a Sininho. – Afirmou rindo, lembrando-se do que pensara momentos antes.

- Mas tu és muito grande para ser a Sininho. – Retorquiu a mais nova.

Engoliu em seco – existe uma idade máxima para sonhar, até as crianças percebem isso, já tinha passado da validade.

Não podia ser! Tinha efectivamente de fazer algo por si própria, já não aguentava aquilo.

No dia seguinte, levantou-se cedo, saiu para as compras. Escolheu roupa de um estilo completamente novo, mais descontraído. Passou pelo cabeleireiro, fez um corte radical e pintou o cabelo de um tom avermelhado. Passou num oculista e comprou uns novos óculos de sol tipo “gata”. Estava tão diferente, com um ar muito mais fresco e leve. Sim, poderia brincar, saltar, correr!

Quando ia a descer a rua, viu ao longe a sua cunhada acompanhada pelas suas sobrinhas. Não a iriam certamente reconhecer. Quando estava a cerca de vinte metros, a mais nova largou a mão da mãe e correu na sua direcção.

- Tia! Tia! Vamos brincar aos cento e um dálmatas! Tu és a Cruela.

4 comentários:

Armindo S. disse...

Também tu G F tens o sentido de humor afinado. O estilo está apuradíssimo, como sempre tem vindo a ser hábito.

Margarida Tomaz disse...

"O essencial é invisível para os olhos"
in O Principezinho

Nuno Baptista Coelho disse...

Bolas, a Margarida antecipou-se-me. Ao longo de toda a leitura, pensei exactamente nessa frase de S. E., aqui brilhantemente rebatida pela GF. O essencial transparece sempre, ou não seria essencial, as interpretações é que variam. E o desenho de um chapéu, muitas vezes, é só o desenho de um chapéu.

Um conto brilhante, bem temperado por um humor self-deprecating quantum satis, e uma punchline final a reconciliar-nos com esta chatice toda de ser. E ainda mais, um conto em que o essencial é tudo menos invisivel. Bravíssimo.

Aproveito ainda este espaço para saudar todos os companheiros desta jornada, e desculpar-me destes dias em que estive desligado da tomada, mesmo no que respeita à mais elemetar cortesia de retribuir um comentário. Estou de volta, e farei o meu melhor para recuperar os diversos atrasos.

Adriano disse...

É verdade. O que verdadeiramente importa nem sempre está à vista. E ainda bem que assim é. E ainda bem que a Guiomar nos soube mostrar isso.
Mas olha, Nuno: parece-me que, no conto, o "essencial" está "invisível", quero dizer que, para um olhar virgem, o que interessa não é o que é, é o que parece. De aí a proposta da criança: "Tu és a Cruela" E isto é tramado. Ou será que já estou assim tão velho e cansado?