26/01/2009

TERRA LAVRADA

Tempo não teve para nada, que nestas coisas o tempo nem se sente. O tiro rosnou-lhe nas costas. Mordeu-lhas. E de imediato se viu desmaiando a dor de viver a morte, vontade domada. Depois, o quanto não interessa, uma eternidade ou a beleza de um segundo, pouco importa. Depois, reconheceu que deitado não estava entre o milho, maçaroca quente e um pouco de sal, de vida, areia macia a fugir-lhe dos dedos. Mas não. Estava ali. No alcatrão. A princípio quis fugir. Acordar de manhã manhãzinha, esteira calma, solitária companheira. Levantar-se, que os deuses não haviam previsto aquilo. Sempre estivera no seu convencimento o deixar de ser, o silêncio dos xicuembos, a morte. Mas na terra, essa mãe amada amante, lavrada. Corpo bom de mulher iluminado de desejo, se essa não fosse uma imagem dolorosa. Muito mais agora, ali. No alcatrão. Fechou os olhos ao abri-los. Ao vê-los, quando se viu, com a dor a tatuá-lo no fundo da coluna, suor de medo suado. No alcatrão. O corpo quieto. O peso das pernas, imobilidade sem préstimo. E o futuro. O seu futuro, se não descosesse o destino agora, ali. No alcatrão. Havia muitos como ele. Sorriam uns o amargo da eternidade. Cerravam outros os dentes para não ver, não gritar o vermelho que eram. Uns poucos tinham abertos os olhos, cegos pelo fumo da vida assim. O velho Land Rover estrebuchava, chapa cem queimada, negócio falido, sonhos baleados. Visão desfocada outra vez. A dor. E o alcatrão. Era sujo, e sentia vontade de chorar. Mas um homem não chora, mentira universal. Urinou todo o cansaço e tentou erguer-se, desejo irreprimível, porém impossível naquele instante fora de todos os instantes possíveis. As pernas jaziam, alheias à sua vontade de gatinhar. E desmaiado desmaiou um outro ainda, impotente. No alcatrão. Sonhou o cheiro da terra fresca, no depois imediato da chuva. E no sonhar calado desse odor a mulher grávida, vieram-lhe conturbadas recordações outras, perfumes, sons, sabores e coisas do tempo que atrás não volta, danado na pressa de nunca parar. Sonhou dias que tinham sido dele, como dizem que acontece na lucidez do sonho que perder se vai. E foi nesse amargurado espasmo, nessa lembrança agarrada à vida, que em câmara nítida se recordou do motivo que impensável o conduzira ali. Ao alcatrão. A carta. Na terra lavrada foi quando chegara a carta. Vinha fatigada de velhos machimbombos crivados de esperanças, ensebada de muitas mãos. Viagens. Outros lados impossíveis ou difíceis. Mas chegou, mesmo assim. E com ela veio também o destino, as coisas urgentes do amor. Isso sentira-o logo ele, antes de a ter recebido. A carta. Adivinhou-a, mal a manhã soube a chá quente, o fogo do costume. Contudo, a colheita não se faz de pressentimentos, adivinhações ou réstias de solidão, agruras da esteira, chão duro, terra amada. Por isso, o abraço da mudança que sentia aproximar-se desde que os galos, estremunhados, haviam cantado a hora do trabalho, não o impediu de agir como sempre. Preparou-se para acariciar o milho. E foi ao dia, enxada às costas martelando-lhe nos passos o peso do presságio, sem nela pensar. Na carta. A morte é certa. Mas certa é também a beleza da terra lavrada. Beleza forte, de mãe. Beleza antiga, necessitada do carinho de muito suor. Estava a pensar no bonito que a terra é desde que tratada até gritar de verde, quando o viu aproximar-se. Um baque no coração, mãos nos rins, corpo direito, enxada de lado. Estava quente, o sol. Mas soprava um ventinho de chuva a vir, como competia naquela época. Seca, felizmente, ninguém a pressentia. Ao ver chegar-se o vulto desenhado na contraluz do meio-dia, o mesmo sentimento de que tudo se modificaria em breve lhe acudiu ao espírito. Que diabo havia de o trazer àquela sua machamba perdida na história simples dos avós? A carta. E foi então que a recebeu, das mãos amigas do vulto curvado, a revelar-se o vizinho mais perto na distância de picadas arenosas à sombra de coqueiros, nguretas de sura, pratadas de caril de coco, lenha para as fogueiras das noites de namoros ao luar. Vinha de lá, lá de longe, da vila com administração, posto médico, escola de quadro negro à sombra de larga mafurreira. Vinha de lá, lá de longe, da vila até onde os machimbombos traziam novas de outros lados mais longínquos, de onde ela vinha. A carta. Afastaram-se para a sombra do inevitável cajueiro. Longo cumprimentar idoso como as estórias do cágado, solidariedade de gerações sofrendo traições da terra e do homem. Huum. Ida à vila acompanhado com família. Problema mal de barriga, mufana mais pequeno. Médico paga pouco, menos que ossos de curandeiro, sobretudo agora que madalas bons do antigamente está longe e maningue caro. Muito muito é melhor mesmo posto sanitário. Huum. Por cá tudo bem. Solidão na palhota, Momed amigo. Mas deuses bons são como se vê. A terra não se queixa, necessidade nenhuma de celebrar espíritos. Família também sou eu, mais o cão, bicho de lamber só panela de mandioca velha, e o galo, porco não dá em casa desde que boca é só uma. Huum. Trouxe-lhe isso, mandado com responsável da cooperativa, mas não sei mesmo… A carta. E lê-la? Assim velha e ensebada, tinha mais que um ar de surpresa. Falar que dizia nem pensar, escrever só o nome, mãos grossas do capim. Mas no atrás dos selos já estava rasgada. Dedos muitos já a podiam ter lido. Maseve não sabia? Nada! Humm. E com responsável lá da cooperativa sem sal nem farinha não tinha sido dito nada, um bocadinho só? Um mucadinho tinha pensado ouvir, mas vizinho mesmo que não ia lado nenhum, cooperativa tem sabão e pilhas de xirico… E de isto aqui escrito? Na carta. A propósito ouviu sim. Parece era de Marianinha, lembra? Cansaço extremo. Como podia esquecer tamanha paixão? A vontade de outros levara-a dos seus braços para a cidade grande, desfecho habitual. Saíra de casa com bom lobolo. Há cinco, seis campanhas, abalara contra uma vaca de bom leite, roupa e dinheiro. Tudo riqueza palpável, quando só amor ele tinha para dar, coisa que a família dela dispensara. Miséria. Festa grande fora a do casamento, maior era ainda o seu desgosto. E agora? Infelicidade? Talvez… Na carta. Humm. Pois parece que marido dela abalou-lhe, zangado. Não dá filhos, diz... E quer lobolo de volta, falou responsável. Mas a vaca, maseve sabe, morreu de maleita. A roupa, enfim. O dinheiro é semente de sementes, agora. E tanto mamana como madala dela já estão xicuembos, à sombra do cajueiro ancestral. Abalou-lhe. E carta diz ainda Marianinha dorida, muito à sua espera, sem alma que a ajude, só crença no amor. É simples. Diz na carta, dizem. A teia da vida. Aviso dos mais velho, no cantar repenicado dos galos com o sol a gritar estou aqui. Sentou-se, cansado. Vizinho partiu, cabisbaixa despedida, novidades para falar nas palhotas todas, sura nas redondezas há muita, noites são mais vagarosas que lembranças na hora da morte. No alcatrão. Mas as mortes são tantas e tão estúpidas, que de mortes já basta. Na realidade. Porque aqui, coisa inventada, pode ser pior, se não mentir. Partira em busca do amor perdido, mas não morreu. Era o vazio imóvel das pernas, só. Tanto que sonhou urinado com a vida. Acordou depois no camião, no frio de outros corpos aos solavancos. Pelo alcatrão. Desmaios sem conta, suaves fugas à verdade, suportada pela submissa aceitação da desgraça. O peso da esperança. Do mal, o menos. Estava vivo. Só que aquela teimosia aguda lá no fundo da coluna lhe recusava a virilidade natural das pernas. Cansaço imenso. Descansar institivo. Viajou dormindo um sono de quem não pode dormir, vulgaridade necessária. No alcatrão. E assim o descarregaram no hospital provincial. Quando acordou, depois de muito soro e sangue, recordações e falar anestesiado, não compreendeu nada. Nem me viu nesta minha imaginada bata branca nem sequer reagiu à urgência da carta, fatalidade calada. Não há palavras que. Deixou-se estar, incrédulo, olhar parado pregado naquela mudez. Das muletas. Assim encostadas aos pés de outra cama, outra amputação, pensou que lhe diziam tudo. Fechou os olhos, procurando esquecer aquele fel. E, devagar, perguntou, carregado da desilusão agora descoberta. Como poderia trabalhar a machamba lá na terra amada amante, desde os tempos dos avós acariciada, verde, terra lavrada? Com aquilo? Não! Pegar na enxada, como? Com as muletas? Cobarde, nada lhe disse. Nem sequer que elas, as muletas, não lhe serviriam. Enraivecido com a escolha feita, mau gosto de quem conta mórbido, remeti-o à fisioterapia. Exercícios. Massagens. Ultra-sons, para quê? Tratamento de rotina, sabendo bem que nada deste mundo lhe dará alguma vez outra o cheiro amigo a terra fresca, cheia de promessas. Promessas jamais a terra lhas voltará a prometer. Nem eu, com todo este fingido poder de inventar o que quiser, talvez, se quiser. Ninguém lhe poderá tecer outro destino, outro tempo onde possa afagar o chão, enxada e suor, até dele fazer a sua terra, nossa, lavrada. E nunca chegou à cidade grande, nunca se reencontrou com Marianinha.

Desculpem. Ultrapassa largamente o combinado. Mas não pude resistir ao apelo de uma terra que amo.


4 comentários:

Guiomar Fernandes disse...

Lindíssimo!!! Um conto para apreender com os cinco sentidos. Tão bem escrito que nos colhe a alma. Sublime!

Armindo S. disse...

"Estava a pensar no bonito que a terra é desde que tratada até gritar de verde"
Poesia da mais bela dentro de prosa pura.

Margarida Tomaz disse...

Um apelo do mais fundo da terra, lá donde a poesia brota. Quem escreve assim, vive a seiva das plavras e só tem um caminho: continuar a escrever.

Nuno Baptista Coelho disse...

A carta. A inevitável carta. Sempre o tudo que nos teima em incluir, "a teia da vida", a fazer-se presente no momento supremamente só nosso. Momento de morte que acaba por ser adiada, tanto como a vida o foi, e com a mesma injustiça. A eterna reflexão, aqui magistralmente contada, com o travo do Ultramar servido como um bonus.

Brilhante, Adriano. Em relação ao comentário final sobre a extensão do texto, concordo contigo, não é adequada. O texto é francamente curto para algo que dava um livro. E não é tarde para isso.

Numa nota puramente pessoal, se por acaso ocorrer estares presente no momento da minha morte, peço-te o favor de ires dar uma volta, beber uma bica, talvez, ou uma imperial. Morrer é algo que está definitivamente nos meus planos, mas de forma alguma pretendo que o momento se revista de tamanha intensidade. Com toda a franqueza, tinha em mente uma coisa mais simples e trivial, talvez com uns rissóis servidos durante as exéquias, para aligeirar a ocasião.

Keep up the good work.