23/01/2009

Encomenda

- Trrriiimm, Trrriiimm
- Estou, bom dia.
- Bom dia. Pretendo fazer uma encomenda.
- Com certeza. Já é cliente?
- Sou.
- Pode dar-me o seu número de cliente?
- Quatrocentos e cinquenta e sete.
- Já é um cliente antigo… Deixe-me confirmar os dados. Sr. Manuel Teixeira, Rua da Glória, nº5 – 3º, em Gondomar. Correcto?
- Não… O meu nome é Pedro Pais e vivo em Beja.
- Humm… Pode repetir o número de cliente, por favor?
- Quatro, cinco, sete.
- Não compreendo… está correcto, mas corresponde ao Sr. Manuel Teixeira. Tem a certeza que não são os seus dados?
- Tenho. A não ser que saiba algo que eu não sei, o meu nome é Pedro Pais, há quarenta e cinco anos. Quanto a Guimarães, fui lá uma vez, em férias, vai para uns vinte anos.
- Pois… não entendo. Vou pedir-lhe para aguardar só um momento em linha, para eu tentar resolver a situação.
- Eu aguardo.
- Obrigada.
(por favor não desligue, a sua chamada é importante para nós)
- Sr. Pedro Pais, obrigada pelo tempo que esteve a aguardar.
- Não tem de quê. Podemos resolver a situação para eu fazer a encomenda?
- Sim, vamos fazer uma nova ficha de cliente. Diga-me o nome completo, por favor.
- Completo? Mas isso nunca foi preciso.
- Bem, nós exigimos sempre, mas vou abrir uma excepção, já está à espera há tanto tempo.
- Eu agradeço. Pedro Pais.
- Endereço?
- Rua do Castelo, nº5, 7800 Beja.
- Quais são os últimos três dígitos do código postal?
- Não faço ideia.
- Pronto, deixe estar. O seu número de contacto?
- Para que querem vocês o meu numero de contacto?
- É normal, para o caso de haver qualquer problema com a encomenda.
- Eu faço a encomenda, a senhora verifica se tem em stock e envia pelo correio à cobrança. O que é que pode acontecer de errado?
- Por exemplo, se a encomenda nos chegasse devolvida.
- Se eu a deixasse voltar para trás seria porque não a queria e não estaria este tempo todo ao telefone consigo se não quisesse mesmo fazer a encomenda.
- Acho que vou ter problemas com o meu chefe por causa da sua ficha de cliente, mas deixe estar, diga-me então o que pretende encomendar.
- Pretendo um anel para o pénis e um kit de massagem sensual.
- O quê?! Está a gozar comigo??
- Eu?! Estou só a tentar fazer uma encomenda.
- Mas quem é que o senhor julga que eu sou?
- Empregada de uma sexshop.
- Desavergonhado! Herege! Filho do Demo! Está a ligar para a loja bíblica e ainda vem gozar com as pessoas de fé.

3 comentários:

Adriano disse...

Impagável, o texto. E em dois dos sentidos do adjectivo: o diálogo é admirável, e o desfecho, de tão inesperado, é muito engraçado. Sobra que tais qualidades o tornam num objecto literário muito difícil de se pagar.

Armindo S. disse...

Esta escrita está deliciosa. Os diálogos a fazer lembrar quantos nós temos a desatar em tantas conversas telefónicas algumas delas quase tão díspares quanto a aqui apresentada. Nem se dá pelo desenvolver da elaborada estrutura , rendilhado bem arquitectado em meia dúzia de palavras. Bravo.

Nuno Baptista Coelho disse...

Delicioso, sem dúvida, e impagável em qualquer sentido que se queira. Ou seja, estes gajos deixaram-me sem adjectivos!

Mas não sem comentários, que uma ou outra coisa merece ainda ser dita. Sobretudo sobre a disparatada vida actual. Ou, mais precisamente, sobre o disparate de lhe chamar vida (até aquele opúsculo que o Gutenberg começou por imprimir contém definições mais nobres do termo). Ou a pretensão pateta de que alguma coisa faz sentido, só por que foi planeado que fizesse sentido. Como atribuir um número a alguém, o que é legítimo, e depois esperar que o alguém em causa seja de facto esse número, o que já não o é.
(subjaz aqui um equivoco maior, o de esperar que as pessoas sejam números, mas isso são contos mais largos).

Abstenho-me de emitir comentários sobre o final em adequada cauda de escorpião, por uma razão simples: se não soubesse melhor, diria ter sido eu a escrevê-lo.