10/01/2009

APOSTE NOS SEUS SONHOS!

APOSTE NOS SEUS SONHOS!

Nem pensar. Daria em doido, se apostasse na roda dos sonhos. Já em miúdo tanto voava a bordo do carrinho de rolamentos quanto se via, aterrado, num mundo sem som nem vivalma. Depois, de bigode a despontar, ora sonhava com aquele brilho nos olhos da vizinha mais nova ora se estarrecia envolvido na densa teia de aranha num dos túneis do convento. Duas farripas de barba mais tarde, e era o estremecimento do primeiro beijo ou o arrepio do primeiro exame a sério. Não. Por mais que o incitasse a Santa Casa da Misericórdia, nunca apostaria na lotaria dos sonhos, matéria volátil de mais. Contudo, é verso que o sonho comanda a vida.
E o certo é que se vira disparado desde o alto da Ilha da Madeira, a rasar o passeio nas traseiras dos bombeiros até entrar em derrapagem na curva para a rua da meninice e logo aí descolar, agarrado aos cordões da direcção, rasando o quintal e a mãe a estender a roupa, em direcção às torres da basílica. O galo foi os pombos terem-no forçado a um looping de regresso aos esbracejados berros maternos:
– Desce daí, que dou cabo de ti! Malvado, ainda nos matas aos dois, malandro!
Se assim não tivesse sido, ainda hoje viveria nas nuvens, sem crises, recessões ou pesadelos como os que, noutras febres, o haviam lançado na tal imensidão branca e vazia, paralisado diante da dita aranha no escuro ou, ainda, emudecido até à exaustão no martírio da matemática. Sonhar era tramado, quando o delírio do sarampo ou das bexigas lhe encharcava o sono. E não se tornou mais agradável, só por em adulto ter passado a misturar tudo, numa autobiografia plana e surreal, plena de personagens e histórias enredadas em espaços e tempos distintos, mas cruzados, como se em cada sonho de cada noite diversos castings se processassem em simultâneo.
De uma vez, um amigo, actual empresário de sucesso, injectava-se na casa de banho do Casalinho de Santo António, passava a seringa de vidro ao Mosse e sumia-se. O Mosse, aluno dos tempos de Moçambique, não devia estar ali, naquela primeira casa de todas as ilusões, mas agarrava no objecto com a ponta dos dedos arrepiados pela gota de sangue a pingar da agulha, deitava-o na sanita e recuava, enquanto um magala, conhecido numa reunião dos S.U.V., lhe passava a G-3 com um cravo no cano e puxava o autoclismo. A seringa desaparecia e, também numa voragem inexplicável, já estava sentado na penumbra da Toca da Raposa, a beber imperial e a congeminar a ocupação de uma casa devoluta, com os companheiros de hoje e o entusiasmo da época em que o povo exigia infantários. De outra, em plena savana da Gorongosa, dava uma aula de Cultura Portuguesa a uma das turmas da Universidade de Nantes, quando lhe aparecia a D. Henriqueta, sua professora primária, com uma hiena pela trela e uma palmatória enorme. Ainda lhe esticava o braço direito com a palma da mão virada para cima, mas logo se via numa estalagem do Mont Saint-Michel, a querer festejar o vigésimo ano do seu casamento, embriagado e impotente, com todos os alunos de Português Língua Não Materna a dar-lhe os parabéns em romeno, moldavo, ucraniano, russo e coreano, e a ministra da educação a gritar-lhe impropérios, num repentino hemiciclo meio vazio de deputados a dançar marrabenta.
Não. Assim jamais apostaria na lotaria dos sonhos. Porém, o único eu responsável por semelhante desordem volátil era ele, que cedo se perdera no brilho dos olhos da vizinha mais nova e logo se deixara levar pelo estremecimento do primeiro beijo, uma vez sonhado e tantas outras repetido. E foi assim, a sonhar e amando, que aprendeu a entender-se com a vida, mesmo sem nesta lhe sair, numa só ocasião que fosse, o sonho de um qualquer jackpot de excêntricos.

4 comentários:

Armindo S. disse...

Não te sabia pintor. Tão coloridos são teus sonhos e sonoros mas de harmonias diversas. As faíscas dos rolamentos no alcatrão deixam a quem viveu esse deslizar, a sensação do movimento.Ficou a nostalgia das brincadeiras de crianças em sábados à tarde quando as mães chamam para o lanche. E também não te sabia condutor do autocarro da adolescência perdida por momentos reencontrada.Viagens todas elas de seguida, assim, sem direito a cobrança, na justa medida, reinventar o cubismo na escrita. Aposta assim sempre ganha. Sonhos assim, quem me dera.

Margarida Tomaz disse...

E o que fica e nos apazigua é mesmo essa costela de sonhadores e inventores de poemas da infância que habita connosco, mesmo nos momentos mais cruéis. É ela o fio condutor, entre tantos pedaços de histórias sonhadas...

Adriano disse...

Armindo: pintor, não sou, com certeza. Quanto aos soinhos, uns guardo-os, outros são só palavras.
Margarida: certo é que "o que fica e nos apazigua é mesmo essa costela de sonhadores". Ainda bem que todos nós (pelo menos neste nosso "Contocomtodos")a temos.
Obrigado

Guiomar Fernandes disse...

Essa capacidade de viajar pela infância e pela adolescência, coleccionando sonhos como cromos, e com eles aprender a ajutar contas com a vida adulta, não é para todos. É bom ser adulto, mas continuar a ver a vida pintada com as cores da infância. Belo sonho!