23/01/2009

Na simetria de um espelho

De todos os jogadores convocados, apareceram à hora marcada no aeroporto, trinta e sete para o voo. As duas equipas seguiam no mesmo avião.
Na floresta, o vento fazia estragos na copa das árvores e, bem entendido, nos gigantes mais carcomidos pelo tempo e pelo acumular das intempéries.
As verdes e musgosas superfícies atascam a turfa, transformando em húmus a miséria lenta, instalada a um nível rasteiro.
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Gosto de me masturbar, por vezes apago a luz, outras olho-me num grande espelho. Fico em pé, descalça, totalmente excitada e tensa. Acaricio o peito e a barriga levemente, o meu corpo treme.
Estou a ficar velha e na ausência do meu amante, naturalmente, masturbo-me quando sinto necessidade. Desço as calças até ao meio das pernas e levanto a camisola descobrindo os seios. Aos cinquenta e oito anos o orgasmo é ainda o maior prazer físico que existe na vida. Na minha vida. O corpo fica vivo e poderoso depois de vários orgasmos consecutivos. É essa a sensação.
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O voo estava a decorrer tranquilamente sem atribulações nem turbulências e as expectativas de jogadores e apoiantes das equipas concentravam-se, sobretudo, na ilusão de um bom resultado.
A mãe natureza teve um fraquinho pela matéria, pelo menos nesta zona do Universo e deste modo, se quebrou a simetria, introduziu a imperfeição controlada na perfeição e assim permitiu a nossa existência. Provisoriamente.
A tempestade desabou com grande fúria. Os relâmpagos atravessavam o espaço entre as nuvens em forma de grossas colunas cinzentas. A intempérie começava a inquietar todos os passageiros. Pelas vigias o cenário apresentava-se preocupante.
- Senhores passageiros estamos atravessando uma zona de grande turbulência, agradecemos que fixem todos os objectos ainda soltos ao cinto de segurança – não tinha ainda concluído a frase e um poço de ar atirou vertiginosamente, uns duzentos pés abaixo, a aeronave. Corpos saltaram caindo logo após, no meio do corredor e uns gritos soltaram-se de algumas gargantas mais inquietas.
Kiriakov nunca pensou em Sísifo e, no entanto Sísifo havia acorrentado a Morte, tendo com isso desgostado profundamente o deus dos infernos.
Kiriakov apreensivo tentava desviar o olhar das escotilhas onde, no intervalo de “flashes“ potentes piscava uma centelha rubra na asa quase envolta em nevoeiro, no meio da trepidação constante.
Kiriakov desviou também o pensamento e pousou-o mil e duzentos quilómetros atrás sobre a última imagem da amante, deixada em terra, num apartamento recentemente mobilado.
Da porta do quarto tinha-lhe acenado, na direcção do grande espelho que ocupava toda a parede do fundo do quarto, e saíra já atrasado. Disse-lhe: - Até domingo. Ela desejara-lhe sorte para o jogo.
-Bem iremos precisar–respondera-lhe–ou passará a haver mais um treinador no desemprego.
Duas equipas , da mesma cidade, disputando a final de um troféu continental, mil e tantos quilómetros arredadas da sua origem. Um absurdo imenso mas jogo é jogo e as regras são para se cumprir.
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No solo misturadas com toda a sorte de detritos e completamente encharcadas, duas malas, uma das quais, aberta, de onde saíam roupas desportivas e uma fotografia.
-Encontrámos a caixa negra- ouviu-se uma voz.
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Acabou de se secar, após ter tomado um duche retemperador e tocavam-lhe à porta.
Chovia. Vestiu um roupão e dirigiu-se à janela.
Dois homens, à entrada, aguardavam. Um deles trazia algo na mão. Foi abrir.
Apresentaram-lhe sentidos pêsames e aquela sua fotografia ao espelho, onde , no verso, ele tinha anotado a morada do apartamento novo.
Quando lhe voltaram as costas, encostado o corpo ao umbral, reparou que a chuva também brotava forte dos seus olhos.

3 comentários:

Guiomar Fernandes disse...

Noite de emoções fortes, neste nosso blog...
Este conto doeu no mais profundo de mim. Tão breve, tão sensual e tão profundo. Perder alguém numa fase em que se está a construir o futuro com essa pessoa, será, por certo, uma dor tremenda.
Muito bem escrito, muito sentido.

Margarida Tomaz disse...

Na realidade, aqui para estas bandas, as emoções em turbilhão, vão de vento em popa, ousando em naus, as mais secretas...

Parabéns pela escrita e pela simetria.

Adriano disse...

A guiomar e a Margarida já disseram tudo, caro Armindo. Acrescento só que o conto revela não apenas sentimento, mas também uma imaginação de causar inveja (como a tua: salutar)