12/01/2009

O Peso da Culpa

A criança, terceira filha do casal, nascera com uma ligeira protuberância nas costas. Apesar de a terem sujeitado aos mais diversos testes, não conseguiram concluir a causa dessa deformação. Só uma pessoa estava certa da sua origem, o seu pai: “se tivesse nascido macho, nada disto acontecia, agora sai mais uma peça de louça rachada e com defeito!”
A menina foi crescendo e aquela saliência acompanhava o desenvolvimento da criança. Era irrequieta, quando algo de errado sucedia, já se sabia de quem era a culpa.
A partir dos três anos, com o aumento das travessuras, a protuberância começou a crescer de modo significativo. Piorou por volta dos cinco, quando se começou a perceber que sofria de enurese nocturna. Claro que não lhe davam denominação tão pomposa, chamando-lhe simplesmente “mijona”. Não se coibindo, aliás, de o fazer frente a quem quer que fosse, para ver se ela ganhava vergonha e deixar de molhar os lençóis todas as noites.
Ninguém parecia perceber o aumento da deformação nas costas da criança, embora se notasse já uma postura ligeiramente curvada.
Ao longo dos anos, foi carregando sobre si toda a culpa que lhe queriam incutir. Já nem era necessário que a culpassem porque, instintivamente chamava a si a responsabilidade de tudo que se passasse ao seu redor e que tivesse uma conotação negativa. A sua deformação aumentava e cada vez ficava mais curvada sob o peso de tudo o que carregava nas suas costas.
Sempre que, num rasgo de revolta, tentava endireitar-se, logo o pai, a mãe ou qualquer outra pessoa tratavam de a pressionar para baixo, de modo a manter a sua postura. Ela resignava-se porque, intimamente, sabia que a culpa era sua.
Durante a adolescência tentou assumir uma certa rebeldia e logo se sentiu mais curvada. Conseguiu alcançar uma solução de compromisso. Sim, faria aquilo que entendesse embora soubesse de antemão que o peso que carregava iria aumentar, tanto porque os outros lhe atirariam esse peso, como porque ela própria se sentia obrigada a carregá-lo.
Assim se fez mulher, foi mãe, já quase dobrada ao meio. Envolviam-na um misto de culpa e medo de não ser capaz de aguentar o seu fardo.
Certo dia, sentando-se num banco do jardim para descansar, chegou-se perto dela um homem, muito velho, de longas barbas brancas, muito hirto, que lhe perguntou:
- Mulher, porque estás tu tão curvada, sendo ainda jovem?
- Porque não aguento o peso da carga que carrego.
- Esse peso não está nas tuas costas, está somente na tua cabeça. Podes libertar-te dele quando quiseres.
- É muito simpático da sua parte, mas não sabe do que fala. Esta é a culpa que carrego por querer ser eu, por não viver de acordo com os parâmetros que os outros traçaram para mim. Não me posso libertar.
- Não te poderias libertar se tivesses escolhido negar-te a ti própria e viveres apenas como os outros esperam. Sê fiel a ti própria e endireita-te.
Naquele momento, a mulher levantou-se, ergueu o tronco lentamente, perante o seu próprio espanto.
Quando estava completamente direita, olhava o seu corpo estupefacta por ter superado as suas próprias limitações e, pela primeira vez, olhou o mundo absolutamente de frente, olhos nos olhos.

3 comentários:

Margarida Tomaz disse...

Uma história bem contada e a palavra sábia de um idoso e tudo muda. Deveria ser assim com as guerras.

Adriano disse...

Diria que devia ser assim com cada um e com todos nós, em todas as ocasiões: o mundo não é nada, quando não sabemos ou não podemos olhá-lo de frente. Por isso é que acho muito bem conseguido o conto e, sobretudo, o seu desfecho (toca-me, sobretudo, a "força" do advérbio e da expressão "olhos nos olhos")
Adriano

Armindo S. disse...

Este conto fala de medo e fala também de coragem. Fala de tempos diferentes, de um antes e de um depois. A descoberta da verticalidade do ser, no interior de si.
A fé cada vez faz mais sentido.
O fundamentalismo nem por isso.
A mecânica do acreditar faz-se de segmentos de escolha, opções cuja razão se centra numa fé.
Seja teólogo ou cientista, seja ateu ou religioso, o ser ao optar põe em marcha uma certa dose de fé.
Para alavancar o medo- porque o medo é um peso- carradas de fé são necessárias, mas depois: o milagre.
Este conto levou-me a reflectir (e não será essa uma das funções de um conto?)sobre a inacção provocada pelos medos. Tanto ónus inculcado tantas vezes sem as vítimas se darem conta, a maioria por excesso de inocência, outras por excesso de negligência.
Acreditar é o milagre e uma espada de dois gumes.
Obrigado, Dulce, por conto tão bonito.