28/01/2009

Boa Noite, Amor.

Boa tarde, minha senhora. E já de começo rogo escusa deste “senhora” assim tão formal, a sugerir uma rispidez de seca matrona onde bem vejo que não há senão a delicadeza própria de tenra donzela, mas manda o formalismo social que lhe dê este respeitoso “senhora”, ou então “menina”, o que seria decerto o mais correcto, mas cujo crescente desuso poderia talvez suscitar estranheza, e convocar leituras quiçá mais equivocas, e inteiramente distantes das minhas intenções. Seja como for, esclareço que não trago outra pretensão para além de lhe desejar a melhor das tardes, e pedir-lhe a honra e o prazer da sua companhia numa bebida que gostaria de partilhar consigo à sombra deste carvalho, a menos que de um ácer, olmo ou cipreste se trate, que eu em botânica entendo-me menos que nas questões do belo feminino, mas que em todo o caso ensombra esta esplanada que tão convenientemente se encontra à nossa beira, e onde em suma a convido a tomar assento.

Com tantas palavras, e tão bem rendilhadas como foram estas, manda o senso comum que se ponha a destinatária das mesmas de pé atrás, expressão ainda assim ambígua, pois que sugere estar chegado à frente o outro pé, consabido que é o facto de toda a gente ter dois, salvo no caso de ser coxa, o que também acontece. Nada disto de forma alguma releva no que à potencial cantiga do bandido diz respeito, pelo que seria caso verdadeiramente espantoso que Emília se dignasse aquiescer a convite formulado em tão suspeitosos termos. Emília ponderou brevemente o assunto antes de aceitar o convite, e se há ainda quem se consiga espantar com semelhantes lances, coisa que deveras receio, fica aqui o veemente conselho, dê-se pressa em mudar para outro mundo, o qual dizem por aí que existe, e que será até bem melhor que este. Esta história trata apenas daquele mundo onde nós vivemos, onde coisas destas diariamente acontecem, tão despudoradamente como se fossem possíveis, e onde existe uma esplanada em que Emília se sentou a uma mesa com um desconhecido, e com desenvolta timidez pediu um vodca com gelo.

Um tal começo preclui à partida quaisquer laivos de convencionalidade que acaso intentassem manifestar-se, o que conveio excelentemente àquelas duas almas, em quem tais manifestações se faziam usualmente distinguir pela ausência. Acabaram por gastar a tarde toda em palavras de ponderosa trivialidade, arrombando o místico lugar-comum com a violência de serem eles próprios, dotados das aspirações mais mesquinhas e das mais transcendentes, e ainda das mais usuais, aquelas em que a mesquinhez se oculta sob um véu de transcendência, a menos que seja justamente o contrário. Tudo debateram sem reserva, esmiuçaram o que é baixo e o que se eleva, o sagrado e o torpe, e por fim o que era apenas ele e o que era apenas ela, o que queriam de si mesmos, o que queriam da vida, o que poderiam querer um do outro.

Foi neste último ponto que esbarraram numa lastimável compatibilidade de gostos. Ele gostava de mulheres. Ela também. Não como uma definição de si própria, como também ele se não definia no simples acto de andar atrás de gajas, nada disso, que ele era muito mais que o marialvismo que casualmente os juntou nesta tarde anódina. Também ela era muito mais do que essa mera preferência, coisa de resto tão trivial como tudo o mais nesta história, só a um imbecil ocorreria definir alguém pelo tipo de outro alguém com quem lhe agrada corporizar a sua intimidade, como se não andássemos pela vida a fazer mais nada. Infelizmente, no entanto, as circunstâncias não permitem de forma alguma excluir a provável existência de imbecis. Não que isso lhes fizesse diferença, não nessa tarde em que o Verão se preparava para começar.

Acabaram por ficar nus, coisa que o clero e demais moralistas de serviço farão a gentileza de perdoar, sob argumento de nada de mais se ter passado, eles é que se passaram, os doidos, e deu-lhes na veneta ir nadar no lago, um lago que convenientemente surde nesta história porque, sejamos francos, é impossível negar qualquer coisa, ainda que seja um conveniente lago, a tão simpáticos tresloucados. Saíram com os sinais do amor todos trocados, que a água fria tende a provocar efeitos opostos no homem e na mulher, mas eles não eram nesse dia uma coisa nem outra, e pouco caso se fez de quem tinha o quê mais pequeno, nem os quê mais espetados. Apreciaram-se enquanto se vestiam, depois de se terem abraçado, tão nus como se usassem roupas. Separaram-se com um sorriso cúmplice, e um irónico aperto de mãos.

Enquanto se afastavam juntos, cada um para o seu lado, houve quem julgasse escutar um breve e abafado murmúrio, Boa noite, amor. Mas ninguém compreendeu bem o que a despedida significava, nem sequer de qual deles o desabafo partiu.

4 comentários:

Armindo S. disse...

Muito obrigado, Nuno.E de uma cajadada mato logo duas lebres.

Nuno Baptista Coelho disse...

Não me sentiria bem comigo próprio se não agradecesse a delicadeza de sentimento que presidiu ao uso da palavra "lebres", em vez de "coelhos".

Um abraço, Armindo.

Guiomar Fernandes disse...

Welcome back!!! Já se sentia a falta da tua escrita.
Este conto é tão doce,tão terno, tão envolvente... e, como sempre, tão bem escrito.
Por favor não te voltes a ausentar tanto.

Margarida Tomaz disse...

Surpreendente este contar rendilhado, onde as personagens percorrem tempos e espaços que sugerem vidas, num "Boa Noite Amor" que se abre para a noite, deixando no ar a ternura de um murmúrio, qual dedilhar de piano que, ao virar da esquina, suavemente nos transporta pelos caminhos da música, para lá do limiar, como dizia um poeta, "longe das palavras de aço". GOSTEI.